Por que o The Hundred revela tanto sobre o seu aluno?
- Janaína Cintas
- 5 de jun.
- 3 min de leitura

O exercício The Hundred é um dos movimentos mais emblemáticos do método Pilates. Tradicionalmente inserido no início da aula, ele é amplamente reconhecido como um “aquecimento” geral do corpo. No entanto, do ponto de vista da biomecânica e da avaliação funcional, esse exercício tem potencial para se tornar uma ferramenta clínica poderosa na identificação de padrões disfuncionais de movimento, controle motor e estratégias respiratórias compensatórias.
Por trás da simplicidade de sua execução — manter o tronco em flexão axial sustentada, com pernas elevadas e braços bombeando em ritmo respiratório — há um complexo recrutamento de cadeias musculares e sistemas de estabilização. O Hundred exige não apenas força, mas principalmente coordenação, dissociação segmentar e sinergia entre controle postural e função respiratória. Isso faz com que ele funcione como uma “janela” para observar como o sistema nervoso central organiza o corpo frente a uma tarefa de alta demanda.
Durante a execução do exercício, é comum que alunos apresentem sinais clínicos que indicam limitações ou falhas nos sistemas de estabilização central. Por exemplo, quando observamos uma elevação dos ombros e rigidez cervical, há forte indício de recrutamento excessivo dos músculos acessórios da respiração, em detrimento da ativação diafragmática. Esse padrão é bastante comum em indivíduos com respiração torácica superior crônica, e pode estar relacionado a quadros de ansiedade, hipervigilância corporal ou disfunção do assoalho pélvico.
Outro aspecto crítico está na relação entre pelve e coluna lombar. A incapacidade de manter a pelve neutra, especialmente quando as pernas são elevadas a 45° ou 60°, sugere uma falha de coativação entre transverso abdominal, oblíquos internos e multífidos. A presença de hiperextensão lombar, anteversão pélvica ou dor nessa região durante o exercício é um indicativo claro de que a unidade de pressão intra-abdominal não está sendo eficientemente utilizada. Isso se alinha à literatura que descreve o papel do sistema estabilizador profundo na manutenção da postura e na prevenção de lombalgias (Hodges & Richardson, 1996).
Do ponto de vista cervical, a incapacidade de sustentar o olhar e a cabeça em flexão axial estável, com queixas de dor ou sobrecarga na região do pescoço, aponta para desequilíbrio entre os flexores cervicais profundos e os extensores cervicais. Esse padrão, muitas vezes não percebido por profissionais menos experientes, pode se tornar um limitador importante no processo de evolução do aluno, pois compromete não apenas o Hundred, mas toda a organização do eixo cabeça-pelve.
Além disso, a fadiga precoce, os tremores visíveis e a dificuldade em coordenar a respiração com o bombeamento dos braços revelam, muitas vezes, um baixo nível de controle motor central. Essa condição pode ser observada tanto em alunos iniciantes quanto em indivíduos que passaram por quadros dolorosos crônicos, pois há uma tendência de reorganização ineficiente das estratégias motoras, gerando movimentos rígidos, fragmentados ou excessivamente compensatórios.
Soma-se a isso o fato de que o Hundred é um exercício que desafia a propriocepção, o ritmo respiratório e a resistência postural. Isso significa que ele pode ser usado não só como ferramenta de ativação, mas também como instrumento de triagem funcional. Ao ser aplicado com olhar clínico, o instrutor ou fisioterapeuta é capaz de extrair informações sobre a integridade do controle neuromuscular do tronco, a função respiratória e o nível de integração das cadeias musculares.
Por isso, o Hundred não deve ser encarado apenas como parte do repertório clássico, mas como um verdadeiro recurso avaliativo, que exige interpretação biomecânica refinada. Através dele, é possível prever padrões de compensação, antecipar lesões por sobrecarga, entender limitações na evolução técnica do aluno e direcionar a conduta terapêutica ou de treinamento com maior precisão.
Em um cenário onde o Pilates se consolida como ferramenta de reabilitação e condicionamento consciente, o profissional que domina a biomecânica do movimento e entende o corpo como sistema integrado amplia não só os resultados clínicos, mas também sua autoridade profissional.
O Hundred revela — para quem sabe olhar — onde estão as falhas, onde mora o potencial, e o que precisa ser reequilibrado.
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📚 Referências bibliográficas
Hodges, P. W., & Richardson, C. A. (1996). Inefficient muscular stabilization of the lumbar spine associated with low back pain. Spine, 21(22), 2640-2650.
Cintas, J. (2017). A Ciência do Pilates. São Paulo: Sarvier.
Cintas, J. (2019). Power House.
Calais-Germain, B. (2010). Anatomia para o Movimento – Volume 1 e 2. Barueri: Manole.
McGill, S. M. (2007). Low back disorders: evidence-based prevention and rehabilitation. Human Kinetics.
Sapsford, R. R., et al. (2001). Co-activation of the abdominal and pelvic floor muscles during voluntary exercises. Neurourology and Urodynamics, 20(1), 31–42.



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